terça-feira, 13 de julho de 2010


À Mãe
Porque todos os dias são seus



Anoitecia cedo. Uma discreta luz visitava-me no quarto com um beijo sublime ao deitar da cama. A magia de um conto nocturno, às vezes um poema lido como ninguém até agora ainda leu, ou aquelas palavras pausadas a narrar uma estória de que eu nunca chegava a ouvir o fim, ao deixar-me adormecer embalado por numa tranquilidade de planícies frescas. Antes, sentia os lábios de minha mãe pousarem-se divinalmente na minha face esquerda e a palma da sua mão a passar, levíssima, pela cabeça, num último afago de anjo. O seu perfume enchia o quarto por algumas horas e eu ficava como um pássaro aconchegado no ninho, entregue à pureza dos sonhos, a sorrir – dizia a mãe – com um ar de quem vive momentos de plena felicidade. Adivinhava ser eu passeando-me por um fragmento de sonho, naquele imenso campo, a colher flores selvagens para lhe oferecer, num ramo enfeitado de estrelas. E tantas vezes aquela santa perdia horas a contemplar a tranquilidade do meu enigmático sono e esse indecifrável sorriso! Sei que estava ali junto de mim, sentada na cadeira de embalar, e ali também ela chegava a adormecer. Depois, saía do quarto muito devagar, pé ante pé, levando o silêncio no último olhar.

Andava pelos meus três, talvez quatro anos. Era o tempo das mais ingénuas e mais pertinentes perguntas: «Mãe, porque é que as cerejas nascem aos pares?», ou assim: «Porque é que só fazemos anos uma vez por ano?» De súbito, uma ideia de colo. O mais nobre trono que todos em meninos desejamos. Mãe... e as mãos erguidas junto ao ventre à espera dos seus braços.

Trago desta infância um rol de imagens inesquecíveis. Recordo aquele campo fronteiriço à casa com giestas e flores selvagens, e o pão com geleia que minha mãe me oferecia no dia dos meus anos, o seu olhar que me falava tão fundo, aquele sorriso numa expressão de alma generosa e aquele gesto tão doce e tão imensamente terno a dar-me o pão com geleia: «hoje fazes anos, meu filho!»

Coisa rara, um pão com geleia só em dia de aniversário! E o pão não era tudo: mas o gesto, o sorriso, o olhar. Aquele olhar que falava. E o rosto? A flor mais bela de que nunca saberei dizer o nome. Mãe? Era isso. A palavra nunca gasta, incansável sempre, a sugerir ternura, a voz rente às mãos inquebráveis, sempre estendidas à oferta: a grandeza do pão, um beijo a seguir e, logo depois, a mão. É verdade, a mão: um mundo que me segurava no patamar sinuoso dos dias.

Que vida a minha! Deixou-me cedo. Sem que eu lhe retribuísse, uma vez que fosse, um dos tantos carinhos que me deu. Nem o gosto de lhe tocar, com a polpa dos meus dedos, numa daquelas rugas tão belas que trazia desenhadas no rosto. Já lá vão tantos anos. Parece que foi ontem! E, por Dezembro, no dia dos meus anos, nunca mais comi um pão com geleia. Mas ainda hoje sinto a sua mão segurando um pão na minha mão.



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