sábado, 26 de junho de 2010

O meu mundo assim


 I - Os senhores do poder convidaram-me e levaram-me em luxuosos caros de visita a bibliotecas, museus, templos e monumentos do meu país. Aí pude apreciar a beleza da música, da dança, da pintura, da escultura, da literatura, do teatro e do cinema, obras de tantos artistas, homens e mulheres que contribuíram com o seu saber e a sua arte para enriquecer o meu país. Gostei.

II - Os senhores do poder mostraram-me grandes avenidas, enormes estátuas, as maiores praças e os mais faustosos palácios da cidade onde vivem os Presidentes, os Generais e os Cardeais todos do meu país. Também gostei.

III - Estava um sol radiante, e os senhores do poder quiseram que os acompanhasse à beira mar para ver uma infinidade de iates para recreio, barcos que são autênticos palacetes no mar, cruzeiros e outras embarcações de luxo para gozo de férias dos senhores do poder do meu país.

IV - Do outro lado da praia, vi outros palácios bordados a ouro e a prata e rodeados de magníficos lagos de água e majestosos jardins onde vivem os senhores do poder, os banqueiros e os bem sucedidos empresários do meu país. Até aí tudo era beleza, esplendor, luxo, exuberância e riqueza no meu país. Confesso que fiquei maravilhado.

V - Nesse dia, interroguei os senhores do poder do meu país. Assim: - Afinal, se viveis tão bem instalados, cheios de ouro e prata, e rodeados de tanta beleza e tanta maravilha, porque razão fazeis a guerra e com ela destruis centenas de cidades e milhões de seres humanos?
Logo me apercebi que os senhores do poder ficaram muito inquietos e muito irritados comigo. Paciência... era eu que desconhecia a ingenuidade ou a provocação da minha pergunta.
De seguida, pedi aos senhores do poder que me mostrassem as ruas e os bairros onde mora o povo do meu país. De repente, os guardas do poder taparam-me os olhos e esconderam-me no deserto onde não podia ver nada nem falar para ninguém. Não gostei. Contudo, penso que era eu ainda demasiado ingénuo para desconhecer a provocação do meu pedido.

VI - Quando, pela noite, os guardas do poder adormeceram, consegui fugir, e, orientado por uma estrela, fui ver as ruas e os bairros pobres onde mora o povo do meu país nas mais miseráveis e inumanas condições. Fiquei triste, muito triste.
Depois assisti a uma enorme manifestação de trabalhadores que tiveram a coragem de dizer não a uma lei que os senhores do poder legislaram e que conduz de novo os trabalhadores do meu país à condição de escravos. Foi então que vi os guardas do poder espancar violentamente os trabalhadores e os melhores filhos do povo do meu país. Aqui deixei de ser ingénuo. E revoltei-me.

VII - Por fim. chegaram os senhores do poder e ordenaram que os guardas do poder do meu país se atirassem contra mim. E aí os guardas do poder não me taparam os olhos nem me esconderam no deserto, mas roubaram-me o olhar e as palavras e prenderam-me como se eu fosse um criminoso assassino.


quarta-feira, 23 de junho de 2010

Inventar o Olhar


sentida tarde de silêncio
aquele adeus junto ao cais

nem outro olhar soubemos inventar

sexta-feira, 18 de junho de 2010

                                                
 José Saramago


Entardeceu agora mesmo:
uma flor de azul visita o lugar da água
porque antecipaste a hora da partida.

 
Não deixas sequer um rastro de silêncio:
ninguém pode calar-te
ninguém pode ignorar-te
e hão-de ter-te aqui durante séculos.





terça-feira, 15 de junho de 2010

Estranho Olhar



A Página é branca. Rumo dos meus passos:
serpentes rastejando a espessa brita.
Ás vezes são tão falsos os abraços
e tão grandes os segredos desta escrita...

Incessante a brancura: estranho olhar.
Nada mais, meu amor, que me pareça
que um verso a outro verso possa dar
à poesia um nome que enlouqueça.

Lá mais para a tarde, à mesa do jantar
guardo num verso a remendada manta
que contém as palavras de um profeta.

Poesia: essa voz que quer cantar
sai do silêncio e no silêncio canta
correndo as veias loucas de um poeta.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

São Mágoas, meu amor



É assim devagarinho e deste jeito
como quem passa a mão por sobre a lua
que seguro o teu rosto no meu peito
onde reside agora uma mágoa tua.

São mágoas que todos suportamos
todos guardamos em secreto leito
quando ao leito pela noite regressamos
e sentimos vazio o nosso peito.

Coisas nossas que a vida nos oferece
só as sentimos quando nos parece
a nossa alma banhada em solidão.

Mas há em cada dia um novo dia
um dia em que sentimos alegria
e um amigo nos abre o coração.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Arte do Ninho








Bocados de terra mole e palha seca
carrasca, urze e pontas de giesta
um bico rendilhando eternidades
e um voo paralelo a uma aresta.

É esse o ninho que o sol venera
e tudo quanto fica no olhar
mais o silêncio da arte e a breve espera
onde te deitas à noite a descansar.

Minha ave de voos íntimos e certos
que guardas o testemunho do encanto,
faz o teu ninho, acasala ao canto...

Ó ave de voos íntimos e libertos
que olhar se sobrepõe à persistência?
Essa arte que tens no bico, a paciência!

                                  * Baladas de Orvalho

                                                                

domingo, 6 de junho de 2010

Manhã Crespada

imparável este vento
a folhagem correndo o chão
e o ar e  as ruas paradas

atravesso o último olhar
e só depois as pedras
me afastam deste lugar
onde te procuro

uma manhã crespada
o chão é áspero e ainda o vento
e outra vez as pedras

sei do silêncio e no silêncio grito
não desisto de te procurar

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Trocadilho de Graça

o corpo da graça
exposto na praça
               à espera do dia

amor em redor
era o meu amor
              que ali aparecia

vi a minha graça
despida na praça
             eu enlouquecia

tomei-a de graça
e fizemos amor
             no meio da praça

até vir o dia

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Voo

Habito esta incerteza:
o lugar exacto
para o resgate das mãos

E, contudo, permaneço
rompendo os dias inacessíveis

Hoje talvez me demore
vou partir com as aves.