sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Numa composição pertinente e muito bem apurada, a partir de palavras ou frases inspiradas no sabor da leitura do livro Manto de Sombras, estes Momentos Soltos de Adelaide Graça, traduzem a evidência e o exemplo literário de como se constrói um belíssimo texto poético, como se trabalha o folguedo das palavras e, a elas, se dá cor, ritmo, harmonia e musicalidade. Parabéns!

Momentos Soltos
      
               De  Adelaide Graça

A dúvida cai. Estatela-se
agora desfeita sobre a mesa
Recordações
a pressa de chegar aonde já cheguei
e o tempo de partida sem ter partido
Depois…
uma janela aberta. Sou que entro
à passagem do vento
A noite caída
as mãos ainda derretidas de frio
um manto de sombras permanece
rompendo os dias inacessíveis
Depois o olhar caído
o rosto rente aos ciprestes e vazio
de súbito tudo tão vazio
Um manto de sombras sobre a luz
e no túmulo
um deus esquecido
Abraça-me a noite
e depois os cedros
a sombra dos ciprestes
um cheiro a murta
e o perdido gesto de uma oração
e nada mais que me prenda a um só gesto
aos passos deste andar
os abraços ainda para lá de mim
e este vento frio a gelar-me os pés
A miragem
um rio entre as mãos
e as mãos vazias
o corpo suspenso na tela
e o meu olhar vadio
No céu um fio de vento
e um corvo azul vem cair-lhe
junto das mãos
Abre-se o céu

e outro sol vem abraçar-me o rosto
um silêncio repousado e fundo
nas palavras presas
e os dedos dobrados nos olhos
O meu olhar é um voo esquecido
e o calor da sala outro silêncio
A distância já ameaça espaços
aperto contra mim os dedos das mãos
há por aí um deus ferido de memória
Respiro para seguir o rosto
e Inês à minha espera
quando o mundo já adormeceu.


             * texto lido na apresentação do romance Manto de Sombras
               Feira do livro, Vila Nova de Cerveira, 11 de Julho de 2010










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