domingo, 14 de novembro de 2010

A voz do silêncio

                      Adelaide Graça -  Escritora


Nem sempre solto a voz. Dizem que estou calada, muito calada. Perguntam-me: o que tens? Passa-se alguma coisa? E insistem, insistem…
Simplesmente não solto a voz. Apenas isso.
O silêncio é o bem e o mal. Instala-se na necessidade de me remeter ao fundo de mim para uma sacudidela, um esvaziamento… para me recarregar de novas sensações, de novas coisas e, até, de novas pessoas.
Não me é nada fácil lidar com realidades que, cada vez mais, me remetem ao silêncio com vontade de gritar ao mundo. Digo ao mundo, não a cada nação ou ao povo. Digo ao mundo criado com tudo a que tem direito. A que temos direito. E grito. Grito à minha maneira, à maneira do meu grito. É então que solto o grito. O grito que a voz calava. O grito sufocado. Sofrido.
Há silêncios que me movem, outros só não me paralisam, porque não o permito. Há silêncios que me devolvem vozes e rostos com a luminosidade dos afectos, outros sugar-me-iam o sangue e as vísceras, não fosse a minha inconformada identidade alertar-me do desmesurado vampirismo.
Nem sempre solto a voz. Embargasse-me pela indignação, pelo arrepiante caminho por onde querem que eu siga. Que sigamos.
Neste fundo de mim, onde me esvazio e encho, apelo ao coração, aos deuses e nem sempre à razão, que em algum canto do mundo, em algum planeta, o silêncio silenciado baste para desmascarar o aparentemente correcto, o aparentemente justo, o aparentemente solidário, o aparentemente amigo, o aparentemente feliz…
Emociona-me o silêncio prostrado dos sem-abrigo. É um silêncio quase sem corpo, mas com alma incomensurável. É a alma que os tange, é a única identidade que os desperta apesar de, a maior parte das vezes, terem o rosto sufocado entre o desgrenho da vida e os chãos de ruas e avenidas.
Cresce diariamente o número de homens e mulheres que encontram nestes chãos, nas soleiras das portas, nas entradas das igrejas, nos bancos dos jardins…o abrigo da noite e dos dias.
Cresce diariamente o número de homens e mulheres, que mergulham a cabeça e as mãos nos contentores do lixo, à procura de algum sustento, à procura deles próprios.
Cresce diariamente a fila para uma refeição quente; a mesma fila para a sopa do Sidónio evocada na exposição “Viva a República” na Cordoaria Nacional. É um bom mote para questionar: Mudam-se os tempos? Mudam-se as vontades?
Pouco mais sei do que o silêncio que sobressai daquele pedaço, daquele pequeno pedaço de chão, onde o sem-abrigo jaz cercado de carros com condutores impacientes pela luz verde do semáforo; de transeuntes todos bem, faz de conta; de cheiros a escapulirem dos restaurantes e das pastelarias onde, em esplanadas, ainda muitos se lambuzam.
Passo entre este silêncio e o meu e questiono uma infinidade de coisas: teoremas e filosofias, matérias que assoberbam a memória, sentimentos que nos azedam e corroem, bravuras que rasgaram novos mundos, a tamanha sede de poder em permanente reinação… e a desmedida perda de valores.
São estas caminhadas que me doem por dentro quando, rente a este e outros rostos sufocados pelo desgrenho da vida, o meu (nosso) interior tão ou mais sem-abrigo exala a sopa e a conduto sem negar uma nata bem portuguesa.

                                 


Sem comentários:

Enviar um comentário